sexta-feira, dezembro 08, 2006

o moço e a fumaça (e um pouquinho mais)

Os sinos que não mais dobram do alto das torres da catedral já se fazem tomados pela ferrugem, observam a tristeza a tomar sol na praça nessas tardes de sábado quando crianças alimentam os pombos. E o moço, tomado pela angústia observa o vagaroso silêncio do poste, que do alto de sua imponência espera pela lua a lhe fazer companhia. E quando já se faz noite, ao iluminar as pobres almas que circulam a seus pés ele observa o padre a negar o aperto de mão do mendigo, o guarda-carros a se indignar com a recusa de mais um tostão e socar a lixeira. Juntos, de braços entrelaçados, os três: a noite, o poste e o moço.
Décimo primeiro andar provoca isso no moço: ver as coisas como os postes vêm. Provoca iluminura nas coisas e nas pessoas, nos cachorrinhos também. Deixa o moço longe pra ver mais de perto certas pequenezas, o humor daquele moço fica mais leve, não há mais belezura ou feieza do alto do décimo primeiro andar.
Parece muito só, ambos o são: tanto o moço quanto o poste. O poste que tem por companhia os insetos em frenesi flertando com sua luz; e o moço, que se distrai com o brincar da fumaça e troca carícias com a solidão. A lua não, essa tem muitas companhias, o mar é a maior. Ah, mas o céu também não é muito pequeno.
O moço vive a ensaiar descer lá na rua e encontrar com essas pessoas que todos os dias ele observa do alto de seu cansaço. Ele: não velho e nem tão jovem, magro de tez clara, quase muito branca de tanta falta de sol. Só não é mais clara sua pele porque gosta de antes de dormir, depois de acompanhar a rotina do poste durante a madrugada, deitar um pouquinho em sua cama com a persiana aberta e ficar a banhar-se pelo amanhecer.
Seus dias e noites, do poste e do moço, são muito regulares durante a semana: ao amanhecer descansam, no correr das tardes ficam meio que incomodados com o transitar muito intenso de pessoas e carros. O mais incomodado é o poste, além de mais perto de toda a confusão, perde toda sua importância e fica só com o peso de sustentar os fios a querer dobrar suas costas magras. Quando vai ficando de noitinha começam a se animar com a idéia de movimento mais vagaroso e com a noite e as sombras a tomar os lugares. O poste vai se tornar importante com sua iluminura, o moço feliz com seu silêncio. É quando ele, o moço mesmo, coloca músicas de cultivar tristezas em sua antiga vitrola, ele as vezes deixa o volume alto para compartilhar com o poste, mas como o vizinho escuta muito mais que o poste ele tem que deixar só o tempo de poucos acordes.
Mas tem um porém, o moço tem um certo defeito de nascença que começa a lhe tomar os momentos, lhe falta a memória para coisas que ninguém esquece. A primeira das coisas que começam a lhe perder do pensar são as cores, para o poste não, porque ele provoca um certo amarelar em tudo que lhe passa por sob os pés. Mas o moço não da muito atenção a isso, ele agora inventa imagens de cores, é mesmo, ele chama vermelho de cinza com mais luz que preto e menos que branco - eu sei que não faz muito sentido (mas só para quem já sabe o nome das cores das coisas. Mas quem inventou o nome das cores?) - não sei que tipo de invenção ele encontra para o verde das árvores que vê ao longe, acho que ele chama de cor de luar sobre folhas, mas quando a lua muda de lugar e faz menos alarde sobre as coisas o nome não muda não. De dia ele brinca de esquecer os nomes das cores que inventou só para ficar imaginando de que cores se tratam as coisas.
Certa noite resolveu descer e ver o poste de baixo para cima, já fazia muito tempo que não saia de casa para nada. Tinha um trato com o vizinho e esse fazia as compras de mercado, pedia que comprasse geléia e conhaque. Aprendeu cedo a beber de conhaque, porque seu pai, muito velho já dizia para ele, muito moço, que aquilo era bom para garganta, que era remédio para solidão também. Bem que tem gosto de remédio, pensou da primeira vez que bebeu e que também foi uma das últimas vezes que saiu de casa, era por ocasião do enterro de seu pai, que já havia enterrado sua mãe. Daí ficou sozinho o moço. Os vizinhos ficaram muito preocupados, mas já era maior o moço, não podiam fazer nada. Foi quando fez de seu amigo o poste, não que não tivesse amigos outros mas é que não lhe era muito familiar as preocupações dos seus.
Seus pais não eram pobres não, o que lhe permite viver assim sem precisar de sair para ganhar o pão. Então pede pro vizinho comprar. O vizinho que já é velhinho e não tem muitas outras preocupação fica até com uma certa satisfação em fazer essas ajudas apesar de preocupado. Vive falando pro moço que ele devia sair pra se divertir e encontrar com outros de sua idade, da idéia de que ele devia ir em um baile qualquer e tirar uma moça para dançar, ao que o moço responde: quero não.
Ah! Já ia me esquecendo, também não lhe pode faltar cigarro, não que seu pai fumasse, fazia isso não. Ele começou a ficar intrigado foi com a fumaça quando viu uma moça que parou na esquina em baixo da sua janela. Não era bem uma mocinha, já era de certa idade, e apesar de ser noite usava um chapéu de grandes abas, ele só conseguia ver uma pontinha do queixo da tal dama, quando tragava seu cigarro e levantava levemente a face, meio de lado, então lhe escapava um pouco do queixo e dos lábios a prender o cigarro que logo a mão lhe tomava de volta. Já criou mil faces para aquela formosa moça, criou também uma dezena de olhares, o que ele mais gosta é um olhar que mira para brasa do cigarro. Ele fica a tragar e tentar olhar para o espelho pra ver como é que fica um olhar que mira para a ponta do cigarro, claro que não consegue, porque quando olha para o espelho desmancha o teatro, mas de qualquer forma ele imagina um olhar meio estrábico a fitar a brasa. A mulher terminou seu cigarro, pisou com a ponta de seu salto e saiu a caminhar com seu chapéu de largas abas e seu longo vestido a varrer o chão. Foi uma das mais belas cenas que ele e o poste já presenciaram.
No meio de uma noite, quando já se fazia sentir o inverno o moço resolveu descer e ver o poste de baixo, encostar-se na parede da catedral e tragar calmamente de seu cigarro. Demorou muito para escolher o melhor traje, tem muitas roupas. Sempre pede para seu vizinho que lhe compre alguma, não sabe bem porque faz isso, pois realmente nunca pensou em sair, deve de ser para ter novidades. O senhor com toda sua boa vontade escolhe as melhores peças, só que o olhar do senhor não acompanhou muito bem os rumos dessa moda moderna, então ele acaba por compra peças que já não usam os jovens. O moço sabe muito bem disso, já que sempre vê esses tipos a caminhar pela rua e da pra perceber, apesar da altura toda, como se vestem. Só que por achar engraçadas as roupas que lhe chegam acaba por ficar satisfeito, além disso, nunca pensou em sair mesmo. Mas agora era diferente, ia descer.
Um tênis ele tinha entre alguns sapatos e, é claro, todos impecavelmente limpos e novos, dava para sentir aquele cheiro de calçado novo em todos, também estavam eles todos em suas respectivas caixas e enrolados em papel de ceda. Escolhe o tênis, sabe que é o mais apropriado. Calça jeans também tem mas prefere as sociais, é por gosto próprio mesmo, sempre achou mais elegante. Quando se viu diante daquela variedade de calças e camisas ficou confuso, pois andava meio atrapalhado com as cores, não queria estar mal vestido naquele dia tão singular, acabou por fazer boas escolhas: calça cinza bem alinhada ao corpo, camisa pólo de listas vermelhas e verdes, e suspensório preto. O suspensório pegou das coisas do pai, sempre achou muito divertido quando o pai usava esses adornos, como os chapéus também, preza por essas lembranças.
Nessa noite o poste estava orgulhoso, o amarelado brilho no negro asfalto molhado pela chuva falava de sua importância. As nuvens escondiam o luar e ele protagonizava a cena noturna. Na altura da cabeça de seu longo corpo magro, marcava os limites entre a luz e a sombra. Certas janelas da parede da velha catedral tem a sorte de ficar sob seu olhar iluminado, há aquelas que se perdem nas sombras acima do poste. Nessas noites, parece que o poste abre os braços. Um pomposo jogo se faz entre as sombras e as luzes, cada qual embeleza a outra e ficam a se tocar todo o tempo.
O moço observa a fumaça vinda do cigarro à sua mão e da a ela qualidade de sombra e claridade dançando, os olhos ardem e uma lágrima corre até salgar a boca. A fumaça se desmancha no ar, mas a boca continua a salgar e o moço não sabe mais porque essas lágrimas lhe umidecem a face. Um sentimento lhe toma, uma falta de ninguém, ou de alguém, pensa nos amores que nunca viveu mas não sabe como é o amar, não sabe o que é um corpo a se encostar no seu, mas sente, sente como ninguém uma silhueta e um peso, o peso de um corpo começa a lhe faltar.
Quando se da conta, ao estancar a última lágrima nas costas da mão o sol já se faz presente suas pálpebras tornam-se irritantemente pesadas e vai se encostando na cama e vagarosamente se deita, logo o amanhecer começa a lhe lamber o corpo e o moço adormece em gozo. Uma febre estranha o acompanha durante o sono, sonhos e silhuetas se misturam com o suor a molhar o lençol, acorda assustado e ao levantar cai e abre o supercílio ao bater na parede, levanta-se novamente e sente o vermelho quente do sangue a escorrer pela face, confuso e de pernas bambas consegue chegar até o banheiro. Todo seu traje, cuidadosamente escolhido, vai sendo abandonado sem a menor atenção pelo chão do banheiro, abre o chuveiro e fica por horas caído no chão da banheira branca, que já se faz meio rosada pelo sangue que junto à água se vai pelo ralo.
Começa a recobrar os sentidos, o sangue já estancou ficando só uma pequena dor na cabeça, enfraquecido leva um certo tempo para levantar-se e percebe que ficou um rastro vermelho pelo banheiro, por suas roupas e pelas paredes da casa. Caminha até a cozinha e senta-se nu ao pé da geladeira aberta. Ali parado, olhando para o azulejo azul da cozinha sente um nó a lhe engasgar, alcança a garrafa de água e da um longo gole, um vazio consome cada pedaço de se ser, de sua carne, e a solidão sempre companheira e amiga começa a se misturar com uma dor azeda. O estomago embrulhado, o azedume lhe sobe até a boca vindo do fundo de suas entranhas, com o amargo na boca ele se levanta e procura alcançar a janela, as coisas todas muito embaralhadas, sente a falta do chão a cada vagaroso passo, antes da janela encontra sua cama e desmaia. Quando acorda, sem saber direito onde esta percebe já se faz noite.
Olha para o teto, senta-se na cama, o corpo parece não acompanhar muito bem suas vontades, alcança a janela e lá embaixo o poste continua a iluminar as coisas, o moço não percebe mas lhe falta a memória para as palavras, sente-se bem ali no alto do décimo primeiro andar mas não sabe muito bem porque, olha para as coisas com um ar interrogativo. Vira-se para o interior do quarto e alcança o interruptor, acende a luz e vê traços de sangue, mesmo sem saber que aquilo era sangue, vai até o banheiro e vê roupas manchadas e jogadas e não sabe direito o que aconteceu por ali, se olha no espelho e percebe um corte no olho inchado e começa a entender que deve ter sofrido um acidente mas não se lembra. Vai até o armário e pega algumas roupas ao léu, acha que tinha alguma coisa para fazer mas não sabe bem o que, veste-se caminha até a porta da duas voltas na chave e se vê diante do corredor escuro, sai, as luzes se acendem, outras duas voltas na chave só que agora ao lado de fora, chama o elevador.
(...)
Sabe que eu to perto de voltar para terras vermelhas, o que é bom por um lado e ruim por outro, vou sentir falta da ilha da magia também. mas vai ser muito bom voltar a conviver com pessoas como o Helder, que postou em seu blog (http://linharesteixeira.zip.net/) o texto do Marlon, outro tipo que é bom de encontrar que eu tenho saudades, abaixo postei o mesmo texto, saudades de vcs meus amigos...
Ele estava deitado em sua cama. Olhando para a brancura sombreada do teto. E pensando. Sua insatisfação incontida o mantinha neste provisório momento de aparente inércia, mas na verdade o que ele precisava e não podia abrir mão de jeito nenhum eram os seus momentos de nada. Parecia que ninguém entendia o quanto ele precisava não fazer nada. O quanto que sem esses momentos a sua vida não fazia o mínimo sentido. Por isso o seu trabalho muitas vezes se tornava um fardo com um peso insuportável, pois o fazia acordar sem querer, fazer coisas que não queria fazer, no momento inoportuno, enfim, tudo isso, todo esse martírio para que a continuidade de sua sobrevivência fosse garantida com seu salário minguado que o fazia se irritar. Mas agora não, ele estava ali, do jeito que gosta de ficar tantas vezes, ali, naquele silêncio morno e calmo de uma tarde de primavera. Pensa em como a falta de compromissos, mesmo que seja fictícia e momentânea, lhe fazia bem, praticamente o rejuvenescia. Muita gente achava que isso era depressão, mas não entendiam o que de fato se passava. Volta e meia ele pegava o seu velho lápis de cor azul e se punha a escrever, rabiscando algumas anotações sem nexo, fragmentos de pensamento. Ele gostava de ver a cor das palavras, não se importava com o sentido. Gostava de se deitar no chão também, sentir a superfície impenetrável, lisa, dura e fria em contato com suas costas, um leve tremor o fazia fechar os olhos de rápido prazer. Quando convinha ele gostava de algum tipo de exercício físico, o que mais gostava era de correr, correr até a exaustão, adorava ficar exausto, só para ter o prazer de descansar. Entretendo-se de forma solitária ele fazia desenhos nas paredes de seu quarto às vezes, forjava criatividade, queria ser escritor, mas sofria pois pensava que um verdadeiro escritor tinha que ser uma fonte inesgotável de idéias pulsantes. Ele em compensação não era sempre que tinha idéias, por isso talvez gostava de ficar sem fazer nada, esperando paciente, afoito uma idéia. As idéias não vinham, então ele se punha desesperado a rabiscar na parede, riscos sem finalidade de compor forma alguma, sem técnica e nem bom gosto, sem gênio e nem criatividade, o que era “ser bom”? Sua transpiração se mostra como resultado do esforço de seus músculos que quase tremiam de força contra a parede, seu corpo se esfregava à parede enquanto ele fazia os seus rabiscos sem sentido. Ele tinha vontade de gritar, mas era tímido, então riscava, riscava... até chorar e ir caindo se arrastando parede abaixo e ali ficando um tempo. Nestas horas ele não queria idéia nenhuma, só queria ficar ali, naquele instante de nada, sentindo a plenitude naquele pingo de existência vazia que, dependendo de seu estado de humor, lhe causava pânico. Mas neste momento não, ele estava ali encostado naquela parede rabiscada incoerente pelas suas mãos, sentindo sua respiração mais próxima de si, queria ficar ali. Cansou e deitou no chão. Se sentia um adolescente que já não tinha mais idade para ser, isso o machucava bastante, era injusto ele não poder ser um adolescente descompromissado e revoltado e triste! Tinha tanta alegria em poder ser assim, lembra com nostalgia esses momentos em que o futuro não era algo com o que se preocupar, pois era jovem demais para isso. Agora já não era tão jovem, apesar de ser bem novo. Mas mesmo assim, sua grande ferida era a sua inadaptação com o possível das coisas, não estava em consonância com ele. Não queria encontrar um grande amor para se ater à vida, não queria que alguém o salvasse de si mesmo; e salvar-se de si mesmo é um heroísmo fadado à derrota, pois só se faz isso vencendo-se, ou seja, derrotando-se. Isso para ele era tão difícil, em todo momento de vitória se sentir em parte derrotado, seu por dentro se desmembrava e se abria em infinitas camadas discordantes e heterogêneas, as quais eram perpassadas por um finíssimo ranho de vida, que o permeava todo e estabelecia uma conexão mínima para que ele não se esvanecesse numa completa dissolução desintegradora. A loucura era a verdade, muita gente já havia falado.



POR: Marlon Tomazela Baptista.