Há alguns anos atrás jovens de classe média alta ateiam fogo e matam um índio que dormia em um ponto de ônibus em Brasília. Os jovens dizem: pensávamos que era um mendigo, eis a justificativa. Agora no Rio de Janeiro, jovens de classe média alta espancam uma empregada doméstica e roubam sua bolsa: pensávamos que era uma prostituta, dizem os jovens como justificativa.
Sirlei saía de madrugada do apartamento onde mora e trabalha para ir a uma consulta médica, provavelmente passaria um bom tempo no interior de um ou dois ônibus até chegar ao posto de saúde, depois ficaria horas em uma fila esperando a tal consulta, depois provavelmente iria para a casa dos patrões arrumar quartos como os dos jovens que a espancaram. Esses, estavam no fim de uma balada, ou no meio dela, voltavam para casa de uma noite de diversão, provavelmente cada um iria chegar em sua casa, de carro é bom lembrar, iriam deitar em suas camas, provavelmente se levantar por volta de meio dia para uma outra Sirlei qualquer lhe arrumar a cama.
Vamos reduzir toda a situação ao seguinte: cinco jovens homens espancam uma mulher. Ae eu me pergunto, onde foi parar a tal honra masculina que sempre disse: não se bate em mulher nem com uma flor, ainda mais cinco homens. Mas não era uma mulher né, era uma prostituta. Hum, então prostituta não deve ser mulher. Assim como não era um índio lá em Brasília, era apenas um mendigo. Hum, então um mendigo pode ser incendiado sem culpa.
Do que estamos falando aqui afinal de contas, que valores norteiam as ações desses jovens? Será que esses jovens espancariam em cinco uma mulher qualquer que estivesse na mesma boate que eles saíram aquela noite? Eu não estou nem falando em espancar um homem em cinco, porque isso eu não tenho a menor dúvida que eles fariam, na boate ou em qualquer outro lugar. E aqueles jovens em Brasília, será que eles colocariam fogo em uma outra pessoa que não em um mendigo, ou mesmo um índio? Suponho que não, em nenhum dos casos.
Suponho que a questão seja a de quem é considerado pessoa e em última instância, quem é considerado gente. Há uma anedota na antropologia contada por Levi Strauss que diz mais ou menos o seguinte. Quando os espanhóis desembarcaram por aqui no nosso continente sul americano sua grande dúvida a respeito dos índios é se eles tinham alma, se tivessem eles poderiam ser considerados gente, para os índios a grande dúvida era se os espanhóis possuíam corpo, se o possuíssem eles poderiam ser considerados gente, então quando os índios matavam um espanhol eles ficavam esperando o seu corpo apodrecer para tirar a prova.
Bom, feito esse parênteses, voltemos aos casos contemporâneos, será que os jovens consideram aquela “prostituta” pessoa, gente? Bom, naturalmente acredito que eles estavam certos de que ela de qualquer forma possuía uma alma e um corpo. Então o que seria preciso para ser considerada merecedora de sua compaixão, para ser considerada uma pessoa? Grana? Status?
Me vem à cabeça o caso João Hélio, a mídia passou dias indignando a sociedade com tal atrocidade, àqueles marginais (aqueles animais) mataram cruelmente uma criança. A sociedade civil se comove e pede providências contra essa violência que assola nosso Brasil, então a polícia que nesse momento é obrigada a dar resposta, invade barracos à procura dos criminosos, que "obviamente" só poderiam estar nas favelas. Quantas vezes será que o barraco de qualquer Sirlei ja foi invadido pela polícia? Ela podia ter morrido de tanta pancada, sem a mínima chance de ser defender, e agora? Será que a sociedade civil vai às ruas e a mídia vai exigir severas punições? Quem é a sociedade civil afinal de contas? Será que não é aquele mesmo pai que diz que o filho cometeu um erro ao espancar a empregada, mas que ele é estudante e trabalhador e não merece ser preso, que o seu filho tem caráter e que não pode ser misturado a criminosos como os de tais e quais morros. Será que esse mesmo senhor não ficou indignado no caso João Hélio, será que ele não foi a alguma passeata pedir justiça e maior rigor da lei? Qual a diferença entre um erro e um crime bárbaro? É a classe?
Eu sei que o último dos cinco jovens se entregou acompanhado de dois advogados. Cada advogado deve ter ganhado para acompanhar o tal jovem mais do que tantas outras Sirleis ganham em um mês inteiro. Agora me digam o que aconteceria se cinco jovens moradores de um morro qualquer espancasse e roubasse a bolsa de qualquer uma das mães desses cinco jovens? Seriam cinco animais ( e não gente ) a espancar uma pessoa de bem, uma cidadã.
Mas nesse caso são cinco jovens estudantes ( gente, pessoa ) a espancar uma possível prostituta ( uma cadela, uma vaca, não gente). No fim das contas, certamente os jovens vão pagar uma indenização e prestar serviços comunitários, vão levar uma bronca de seus pais, que possivelmente vão dizer, tome juízo rapaz. Agora é uma questão de juízo. Milhares de outros jovens marginalizados vão ver tudo pela tv, vão pensar, ah se fosse comigo, ia apanhar tanto da polícia que ia ficar um mês sem levantar, e quando levantasse ia apanhar tanto do meu pai que ia ficar outro mês sem levantar, e depois quando saísse na rua ia apanhar tanto dos manos que ia ficar mais um mês sem levantar. Por outro lado a mensagem que tantos outros jovens de classe média e alta vão receber vai ser: eu posso tudo, posso espancar, posso roubar, porque papai paga a conta.
Putz, vou confessar uma coisa, eu posso até ta sendo sádico, mas eu queria é ver esses moleques na cadeia, e o agente penitenciário falando: ae galera, esses aqui são os playboy que espancaram aquela moça la no ponto de ônibus ta ligado? hein, imaginem só. Cada preso pensando, podia ser minha mulher, minha mãe, minha irmã, porque para eles, prostituta ou não, certamente a Sirley seria gente, e gente fina aliás.