quarta-feira, outubro 04, 2006

brincadeira é coisa séria

Andava a chutar pedras quando criança, nas canelas finas, o roxo e os caroços das pancadas eram admirados e exibidos pelo menino que vivia a pular de telhados em telhados. Ainda hoje traz nas mãos as marcas do cortante das linhas de pipa e dos esfolados no cimento do estreito corredor de seu quintal. Saía cedo no verão de céu azul e sol escaldante, a pedalar pelas ruas do bairro, a se aventurar pelo corguinho da marginalzinha que cortava seu bairro e fazia divisão com o pequeno aglomerado de barracos em que viviam seus visinhos e quase inimigos de criança.
Os grupos iam se formando, as rivalidades se estreitando, temporadas de rolemã, de pião, de pipa, de bolinha de gude, desafios entre os grupos das ruas. Estavam lá, sempre dispostos a desafios, aos contras, testando os limites, a coragem, a honra de si mesmo, da rua, do grupo. Conheciam cada palmo daquelas ruas, escalavam qualquer muro, qualquer telhado, exploravam cada possibilidade de se divertir. Seus corpos iam se construindo em cada tombo de laje, em cada corte em lanças de portão, em cada furo de pregos, em cada estilhaço de bombinhas, em cada queimadura de tochas de balão, em cada mordida de cachorro.
Seus gestos eram moldados pelos cumprimentos inventados, toques de mão que falavam dos estilos, do skate, do boy, do surf, do “normal”, do “noiaba”, as cores das roupas falavam dos anos noventa, as longas franjas, os cabelos compridos, cabelos tigela, inventavam grafias e queriam pichar, entravam nos ônibus e desciam pela porta traseira sem pagar, nos mercados começaram a roubar pequenos mimos pra brincar.
As primeiras mocinhas a beijar, a vergonha e a face a rubrar, as primeiras punhetas, os primeiros tragos e goles, os corpos começam a experimentar novos limites, continuam a querer brincar, nunca pararam de inventar, as aventuras são outras, não olham mais para o céu a procurar pipas que o vento esta a levar, procuram coisas outras pelas estrelas. Uns ficaram pelas ruas cinzas de São Paulo a experimentar velocidades com motores e não mais com bicicletas, outros vivem a trabalhar e a criar novas crianças, outros se aventuram por terras nordestinas, outros foram para o sul, e brincar de brincar com letras, todos levamos a sério a brincadeira de viver.

Um comentário:

Anônimo disse...

o mundo, depois de um tempo, ou de algumas horas, ou ainda, de algumas cervejas, parece mudar de cor. Acho que as cores, de alguma forma, dizem muito do que passa... e também do que fica. Não só as cores, os cheiros, os gostos, desgostos.... amores e desamores. Mas passa... e passou! já não é. Mas o bom é que foi, ou o pior é que foi.
Lindo...