sábado, outubro 22, 2005

fútil furto

Deitada na cama, a insônia pode ser percebida pelas fundas olheiras, com o olhar fixo no abajur acende e apaga a luz no ritmo de seu pulso: lento. Sem desviar o olhar vai percebendo a claridade do céu, que até então negro se faz cinza, ouve os barulhos dos primeiros motores, escuta os primeiros sons de vida que começam a pulsar pelo velho centro da metrópole.
Os camelôs vão se amontoando pela calçada na frente da porta de entrada de seu prédio, a descarga do apartamento do andar de cima, o sexo no quarto ao lado, os berros da criança chamando pela mãe no outro e as vozes que circulam, cada vez mais, pela rua, lhe atormentam os sentidos. Levanta-se, vai ao banheiro, se olha no espelho, abre uma caixa de sapatos, repleta de medicamentos, que conserva cuidadosamente protegida da umidade. Em sua singela farmácia observam-se; ante depressivos, calmantes, anfetaminas, vitaminas, analgésicos... . De um frasco tira duas aspirinas, as atira na boca, curva-se, abre a torneira e toma dois bons goles de água, se vira para o espelho, com uma das mãos espalha um pouco de água pelo rosto e fica observando as gotas deslizando pelo seu rosto, alcançam o pescoço e descansam na camiseta azul e em seu colo.
Volta ao quarto, caminha meio que cambaleando até a janela: cega pela claridade tenta arrumar a cortina-de-lençol, menos claro, deita-se novamente. O corpo começa a doer pedindo por algum movimento, se revira pela cama tentando uma posição menos desconfortável, descansa a cabeça sobre a mão, no pulso vê a marca e lembra de sua tentativa frustrada. A manhã vai se aproximando da tarde, o sol do centro do céu e a rua do caos. O cheiro de comida espalha pelos corredores se misturam entre as quitinetes do quase cortiço onde pessoas sobrevivem entre brigas e gargalhadas.
Levanta-se bruscamente, corre em direção ao banheiro e vomita no vaso bordô, senta-se no gelado azulejo azul-calcinha, e respira profundamente como que para não gritar, pensa no porque de nunca gritar quando, acima de tudo, merece gritar, não encontra nenhuma resposta e também não grita. Respira mais uma vez, conserva agora um semblante de desencanto misturado a desânimo, levanta-se mais calma, vai até a pia, lava a boca, escova os dentes, vai até o armário, escolhe uma roupa, se veste e sai.
Desce as escada, em forma de caracol, meio zonza pelo efeito da rápida descida ou dos vários remédios tomados nas últimas vinte e quatro horas. Se vê lançada à rua, território do impessoal, mal tem tempo de desviar das pessoas que dividem a calçada de um metro e meio de largura, começa a perder o fôlego e, por puro impulso, volta rapidamente para a entrada de seu prédio. Parada, olha para frente e vê cruzando o seu campo de visão limitado pela porta de dois de altura por um e meio de largura. O transito de formas e rostos que cruzam de um lado a outro, no fundo: os ônibus e carros que, freneticamente, circulam pelas vias como glóbulos vermelhos e brancos pelas veias, como cocaína pelo sangue, a ultima imagem lhe faz vomitar novamente na entrada do prédio.
Tenta sair e não consegue, o cheiro começa a lhe embrulhar o estomago novamente, sem pensar entra no fluxo das pessoas e sem perceber já estava no ritmo desvairado do centro da cidade. Entra no primeiro super-mercado que encontra, vai pequenas coisas pelas prateleiras, o caixa sem fila, a caixa cobra o suco e o pão, volta para a rua tira o chocolate da bolsa, come, e sente a glicose no organismo, um sorriso com uma ponta de cinismo entrega o pequeno prazer de um fútil furto.

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